Saudade! essa palavra dolorida
Que os lábios soltam num tremor profundo,
É como a sombra triste e indefinida
Que se alonga nas trevas deste mundo.
Henrique Braga começa o poema com um grito abafado: “Saudade!” — assim mesmo, com exclamação, como quem acorda no meio da noite com o nome de um morto na boca. A palavra é “dolorida”, o que já diz tudo: não é um conceito — é uma ferida viva.
O segundo verso sugere que essa palavra não sai — escapa. Como se ao ser pronunciada, o corpo estremecesse: “tremor profundo”. A imagem da saudade como sombra triste e indefinida reforça seu caráter espectral. Não tem forma, não tem rosto — apenas presença.
E quando essa sombra “se alonga nas trevas deste mundo”, a sensação é clara: até o escuro tem camadas, e a saudade é aquela que se arrasta por baixo de todas.
É como a flor que morre no jardim
Sem que a manhã lhe beije a face linda,
Como a esperança que sorri no fim
E, ao sorrir, desfalece e não mais finda.
Aqui, Braga dá um banho de lirismo necrológico. A saudade é uma flor que morre virgem, sem nunca ter sentido o beijo da manhã. Ou seja: beleza desperdiçada, potencial não vivido, final sem clímax. É o erotismo do que não chegou a acontecer.
Depois, ele nos entrega um dos versos mais lindamente inúteis da poesia brasileira:
“Como a esperança que sorri no fim / E, ao sorrir, desfalece e não mais finda.”
Isso é a essência do ultrarromantismo: a esperança não morre — ela desmaia de fraqueza e continua lá, pálida, atrapalhando a morte digna. Uma esperança zumbi. É o tipo de imagem que parece ter sido escrita com pena mergulhada em lágrima de anjo alcoólatra.
Saudade é o vulto pálido da ausência,
Um eco vão no abismo da lembrança,
Um resto de ilusões, uma cadência
Que entoa a alma morta da esperança.
Essa estrofe é um desfile de fantasmas: vulto, eco, resto, cadência. Tudo evanescente, tudo moribundo. A saudade não é só o que falta — é o que sobrou daquilo que faltava. Braga não está falando da ausência em si, mas da forma fantasmagórica que ela assume dentro de nós.
A imagem da “alma morta da esperança” sendo ainda entoada é poética e cruel. É como cantar para um cadáver na tentativa de reanimá-lo — ou pior: continuar ouvindo a música que ele deixou.
Saudade! é isso — é dor que não se explica,
É soluçar sem lágrima nos olhos,
É ter o peito em brasa e a voz tão rica
De prantos mudos, de amargores tolos...
Aqui, o poeta se rende. Declara, define, esfarela. A saudade é uma dor que não tem tutorial. É uma febre interna com sintomas poéticos.
“Soluçar sem lágrima” — é o choro que o corpo censura.
“Peito em brasa e voz rica de prantos mudos” — uma espécie de combustão emocional abafada.
E a cereja podre do bolo: “amargores tolos”. Braga reconhece o ridículo da dor — o ultrarromântico sabe que está sofrendo por coisas que talvez nem existam mais, mas sofre assim mesmo, com dignidade dramática.
Henrique Braga talvez não tenha inventado a saudade, mas a descreveu como quem beijou um túmulo e perguntou se ainda estava quente. Sua poesia não é revolucionária — é um eco bem executado de vozes mais famosas. E isso, num mundo em que quase ninguém escuta mais nada, já é um feito.
Ler Braga é como folhear um diário deixado num baú velho cheio de perfume antigo e traça. Um pedaço do Brasil literário que não quer ser lembrado, mas também não aceita ser esquecido.